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A ilusão fundamentalista e a perversão da fé

A ilusão fundamentalista e a perversão da fé

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Não é de hoje que um sentimento desconfortável, partilhado por muitos, de que certos discursos feitos sobre Deus e as questões religiosas estão atravessados de uma deturpação e corrupção da fé.  Destes brotam falas agressivas, comportamentos violentos e posturas intolerantes, sejam das lideranças ou por parte dos crentes de uma religião, de forma em geral. Absurdos, escândalos e incoerências feitas “em nome de Deus” geram um mal-estar de que há algo de equivocado nisto tudo. Pode-se afirmar que, uma das razões – entre outras – dessa realidade se dá pelo adensamento de uma mentalidade fundamentalista radical das crenças e práticas dos indivíduos religiosos no país nos últimos anos.

Por um lado, é preciso destacar que nem todo esforço no âmbito da religião para “conservar” as tradições e valores pode ser confundido com uma postura fundamentalista. Toda e qualquer religião se constitui como um processo de transmissão de uma memória dos elementos centrais da sua fé, de geração em geração. Por outro, quando a tentativa de preservação dessa memória religiosa se dá através de um desvirtuamento moral do legado espiritual desta religião, há uma perversão da fé. Neste sentido, nem todo posicionamento que busca “manter os fundamentos” de uma religião é fundamentalismo; entretanto, toda disposição que usa a retórica da “conservação dos valores”, mas impondo-se de maneira violenta e intolerante pode ser entendida como fundamentalista.

Sendo assim, importa-nos brevemente neste texto lançar alguns elementos compreensivos sobre o fenômeno do fundamentalismo, para que, desta forma, entendamos um pouco mais a respeito de  como opera a mente fundamentalista radical,  quais são suas consequências para a fé religiosa e de que forma podemos lidar com àquela.

O projeto fundamentalista e suas “ilusões”

Para os sociólogos Peter Berger e Anton Zijderveld no livro “Em favor da dúvida” (2012, p.66-67), o fundamentalismo contemporâneo – religioso ou secular – possui basicamente três características específicas. Primeiro, é “um fenômeno reativo”, na medida em que reage contra os “efeitos relativizantes da modernidade” percebida como uma ameaça à comunidade que esposa um conjunto determinado de valores. Segundo, por outro lado, é “um fenômeno moderno”, uma vez que não apenas fazem o uso eficiente dos modernos meios de comunicação, mas sobretudo, porque dever ser entendido no contexto do processo modernizador e relativizante, e que, apesar da alegação “conservadora” de sua parte, “o fundamentalismo é muito diferente do tradicionalismo”. Por fim, derivado dos dois anteriores, “é uma tentativa de recuperar o não questionamento de uma tradição, normalmente visto como um retorno ao passado imaculado (real ou imaginário) da tradição”.

Numa abordagem similar, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman na obra “O mal-estar da pós-modernidade” (1998, p.228) destaca que o fundamentalismo religioso é “uma forma especificamente moderna de religião, nascida das contradições internas da vida pós-moderna, de forma especificamente pós-moderna em que se revelam a insuficiência do homem e a futilidade dos sonhos de ter o destino humano sob controle do homem”.

Essa “forma religiosamente vestida de fundamentalismo” é, na perspectiva do autor, “um filho legítimo da pós-modernidade, nascido de suas alegrias e tormentos, e herdeiro, do mesmo modo, de seus empreendimento e inquietações”. Nesse sentido, a postura fundamentalista não é “um soluço de anseios místicos”, nem uma “manifestação da eterna irracionalidade” ou uma “fuga de volta ao passado pré-moderno”. Ao contrário:

“O fundamentalismo é um fenômeno inteiramente contemporâneo e pós-moderno, que adota totalmente as ‘reformas racionalizadoras’ e os desenvolvimento tecnológicos da modernidade, tentando não tanto ‘fazer recuar’ os desvios modernos quanto ‘os ter e devorar ao mesmo tempo – tornar possível um pleno aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o preço que elas exigem” (BAUMAN, 1998, p. 226).

O “fascínio” do fundamentalismo proveria de “sua promessa de emancipar os convertidos das agonias da escolha”, oferecendo a elas, diante das incertezas e multiplicidade de opções, uma “autoridade indubitavelmente suprema”. Nesse sentido, a postura fundamentalista apresentar-se-ia como “um remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo conduzida pelo mercado” e a da sociedade pós-moderna.

Para os fundamentalistas, a religião não é uma questão pessoal e privada, mas manifesta-se como uma “completa mappa vitae” ou seja, “ela legisla em termos nada incertos sobre cada aspecto da vida, desembaraçando desse modo a carga de responsabilidade que se acha pesadamente sobre os ombros do indivíduo” postos pela cultura pós-moderna. O fundamentalismo não é uma “explosão de irracionalidade pré-moderna”, é uma “oferta de racionalidade alternativa” que ser como “feita sob medida para os genuínos problemas que assediam os membros da sociedade pós-moderna” (BAUMAN, 1998, p. 229).

Como se expressa o fundamentalismo na sociedade? Novamente segundo Berger e Zijderveld (2012, p.68) o projeto fundamentalista apresenta-se basicamente em duas versões: o da “reconquista do mundo” e o “subcultural” ou “sectário”. No primeiro caso, o fundamentalismo está comprometido com a tentativa de “dominar toda uma sociedade e impor sua crença sobre ela”. No segundo modelo, abandona-se “qualquer tentativa de impor uma crença a todos”, entretanto, “tenta instituir o não questionamento da crença fundamentalista em uma comunidade muito menor”.

Na avaliação dos autores, entretanto, essa visão é considerada “ilusória” pelo fato de que “a condição imaculada não pode ser retomada e, por conseguinte, o projeto fundamentalista é inerentemente frágil”. Em função disso, esse projeto deve ser continuamente “defendido e escorado” sendo muitas das vezes feito com “tons de certeza agressiva”.

A perversão da fé e um caminho possível

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Para a pesquisadora Karen Armstrong no seu texto “As origens do fundamentalismo” (2017, p.15), aponta que a mente fundamentalista “uma vez que se utiliza Deus para justificar o ódio e o assassinato, se empreende um caminho que conduz inexoravelmente a derrota da fé. Esta religiosidade agressiva pode levar a alguns de seus defensores mais radicais a cair em trevas morais que nos põem em perigo a todos”.

Por esta razão, ainda segundo a autora, o projeto fundamentalista “tem perdido de vista alguns dos valores mais sagrados das religiões confessionais”, produzindo uma “caricatura da religião”, ao torna-la uma “ideologia modernizada” que se coloca como proposta de proposta alternativa à cultura liberal e sociedade moderna, chegando inclusive, a “perverter a religião” quando utilizando-a para legitimar violências e intolerâncias (ARMSTRONG, 2017, p. 452).

Como lidar com a perversão da fé gerada pela mentalidade fundamentalista radical? Um dos caminhos possíveis é oferecido pelo sociólogo britânico Anthony Giddens (2008, p. 567), no seu tratado de “Sociologia”. Para o autor, vivemos “numa era globalizada que tem uma necessidade desesperada de compreensão mútua e de diálogo, o fundamentalismo religioso pode ser uma força destrutiva”.

Por causa disto, em função do potencial violento e agressivo com que muitas das vezes toma forma a postura fundamentalista, do fato de vivermos cada vez mais em uma sociedade cosmopolita, onde há o crescente contato entre tradições e crenças diversas, e de um certo declínio da aceitação inquestionável das ideias religiosas tradicionais na sociedade como um todo, “a discussão e os diálogos são essenciais entre as pessoas de diferentes religiões. São o principal modo de controlar ou dissolver a violência”.


Referências 

BERGER, Peter; ZIJDERVELD, Anton. Em favor da dúvida: como ter convicções sem se tornar um fanático. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
ARMSTRONG, Karen. Los orígenes de fundamentalismo: en el judaísmo, el cristianismo y el islam. Barcelona: Tusquets Editores S.A, 2017.